A Igreja de São Miguel estava envolta por um luto sombrio e quase palpável.
No ar pairava o cheiro pesado de incenso e cera derretida, misturado ao mofo dos móveis de carvalho envelhecidos e ao hálito úmido das pedras frias.
A luz filtrada pelos vitrais coloridos lutava em vão contra a escuridão escondida nos cantos — uma sombra que não cobria apenas as paredes, mas também os corações.
O som do sino, grave e final, sacudia não só as colunas da igreja, mas também os peitos dos enlutados, como um punho invisível que relembrava: algo irremediável aconteceu.
Clara permanecia imóvel ao lado do caixão de seu marido, Samuel. No luto preto, parecia uma folha seca, levada pelo vendaval da perda.
Segurava nos braços a filha pequena, a Lucinha de dois anos, que se remexia inquieta em meio ao abraço apertado da mãe, os olhos inchados de tanto chorar, o rosto marcado por uma dor que não compreendia.
Ela não sabia o que era a morte. Não entendia a solenidade do rito. Apenas sentia: o pai se foi. Para sempre.
Clara inclinou-se, murmurando palavras suaves, tentando acalmá-la, mas Lucinha continuava inconsolável. Olhava fixamente para o caixão, com os dedinhos tremendo ao apontar:
– Papai! Papai! – chorava desesperadamente.
Um nó subiu pela garganta de Clara. Seus dedos agarraram o tecido do vestido de luto sob o véu escuro, como se isso pudesse manter de pé o mundo que desabava.
Ela queria chorar. Gritar. Desabar. Mas as lágrimas haviam congelado lá dentro — o luto tinha garras frias e paralisantes.
Quase toda a aldeia estava presente. Murmúrios cruzavam os bancos, olhares supostamente solidários, mas carregados de curiosidade, analisavam Clara, tentando adivinhar o que realmente acontecera com Samuel.
Alguns falavam de um acidente — algo ocorrido na floresta.
Outros cochichavam sobre castigo divino, pecados antigos que retornaram. Ninguém sabia nada de fato. O boato deslizava como serpente entre os fiéis.
Foi então que Dona Rosa se aproximou de Clara. Uma senhora idosa, com rugas profundas no rosto e ternura nos olhos. Tocou levemente o ombro da viúva, e falou num sussurro ainda mais suave que o silêncio:
– Minha querida Clara… não há palavras para tal perda. Mas… a Lucinha… tem certeza de que ela está bem?
Clara olhou para a filha, que tremia como folhas no vento de novembro. Lucinha já não encarava o caixão, mas sim um canto escuro atrás dele. Seu rosto era puro terror.
E então…
Lucinha gritou. Um berro agudo, infantil, rasgou o ar da igreja como um relâmpago:
– Papai! Papai caiu numa armadilha! Ele está pedindo socorro!
O ar pareceu mudar. Como se mãos invisíveis tornassem o ambiente mais denso. As pessoas olharam ao redor, algumas fizeram o sinal da cruz. Dona Rosa deu um passo para trás e levou a mão à boca:
– Santo Deus… a menina… está vendo alguma coisa.
O coração de Clara martelava, mas ela tentava manter a calma.
– Lucinha, meu anjo, o que você está vendo? – perguntou, a voz fraca como o sopro do vento.
– Papai está lá! – apontou Lucinha para o canto sombrio. – Ele está preso!
Um sopro gelado atravessou a igreja. As velas no altar dançaram em chamas agitadas, como se um sopro invisível as alcançasse. As sombras nas paredes começaram a se mover.
E então…
A pesada porta de carvalho da igreja rangeu lentamente ao se abrir.
Um homem alto, de roupas negras, entrou. Era Henrique — primo de Samuel.
Seu terno impecável não escondia o fato de que se movia como uma sombra que nunca conheceu luz. Seu sorriso era doce, mas gelado como geada.
– Clara – disse com falsa compaixão –, todos sentimos muito. A morte de Samuel… é uma tragédia inexplicável.
Mas ao olhar para Lucinha, seu rosto enrijeceu por um instante. Seus olhos repousaram sobre a menina, que ainda apontava para o canto escuro.
– Ela é pequena demais para dizer tais coisas – comentou Henrique. – Está assustando os fiéis.
Clara respondeu com firmeza contida:
– Ela só quer o pai. Como todos nós…
O rosto de Henrique endureceu.
– Samuel deixou… pendências. Dívidas. Talvez… seja hora de considerar vender a casa. Por segurança.
Clara ficou atordoada. No meio do funeral, ele sugeria vender o lar? Algo não estava certo.
E então…
Lucinha voltou a sussurrar.
– Papai está lá no canto. O homem mau está prendendo ele.
Henrique empalideceu. Sua segurança escorria como cera quente. Alguns fiéis estremeceram. Uma senhora murmurou:
– Crianças assim… não mentem.
O ar ficou denso, como corda esticada ao limite.
E então…
Martinho entrou, ofegante, o rosto tenso:
– Clara! Precisas saber! Dias antes de “morrer”, Samuel me ligou. Disse que Henrique o estava chantageando. Queria obrigá-lo a vender a antiga fazenda. Samuel se recusou. No dia seguinte… aconteceu aquilo.
O silêncio engoliu o templo. Henrique recuou.
– Papai… está lá dentro… – sussurrou Lucinha.
E então… um som abafado veio do caixão.
TOC.
Mais uma vez.
TOC. TOC.
O silêncio explodiu como vidro.
– Isso é impossível – balbuciou Henrique. – A madeira… só está estalando…
– Madeira não bate assim – retrucou Dona Rosa.
– Precisamos abrir – disse Clara.
Henrique se exaltou: – NÃO! Isso é loucura!
Mas ninguém lhe deu ouvidos. Martinho correu em busca do padre Manoel, que logo entrou na igreja.
Mais uma vez: TOC-TOC-TOC.
O padre fez um sinal com a cabeça, grave.
– Abram.
Henrique gritou, implorou. Mas nada o deteve. Jacó e Martinho se aproximaram.
O caixão se abriu.
E ali…
Samuel respirava. Pálido, mas vivo. Seus olhos abriram-se devagar, pousaram em Clara — e lágrimas escorreram.
– Obrigado… por me escutar…
Clara chorava ao abraçá-lo. Lucinha encolheu-se ao lado deles, os braços miúdos ao redor do pescoço do pai.
E então chegou o doutor Egervári, responsável pelos óbitos:
– O atestado… foi falsificado. Nenhuma assinatura oficial. Alguém quis fingir que Samuel estava morto.
– Henrique… – sussurrou Clara.
O homem desmoronou. Confessou tudo. Um sedativo… uma decisão errada… e o desespero.
Mas já era tarde.
A polícia o levou algemado.
Samuel fora salvo.
O amor puro de uma criança o trouxe de volta do limiar da morte.
Duas semanas depois, no Hospital Károlyi
Samuel, com um sorriso fraco, observava Lucinha apertando um ursinho e contando histórias. Segurava a mão de Clara, sem nunca mais querer soltá-la.
– Eu sabia que vocês me encontrariam – sussurrou.
– Nunca te abandonaríamos – respondeu Clara.
Martinho e padre Manoel entraram.
– Henrique foi denunciado – disse o padre. – A verdade começou seu caminho.
Samuel sorriu.
– Mas a maior verdade… é poder estar com vocês.
Lucinha encostou-se a ele.
– Agora a gente pode ir pra casa, né?
Nos olhos de Samuel brilhou uma lágrima.
– Sim, meu amor. Agora podemos voltar pra casa.