— Bence! O seu cachorro está fuçando o lixo de novo! — gritou a voz de Dona Ica por cima da cerca, balançando meio par de sapato como se fosse uma arma sagrada.
Bence, um homem de trinta e poucos anos, eternamente despenteado e com um sorriso meio irônico no rosto, lutava silenciosamente com a porta do velho galpão quando escutou o chamado.
— Calma, Dona Ica! O Huba não faz mal, ele só… está em busca de inspiração artística — respondeu rindo, como se fosse a coisa mais natural do mundo.
— Inspiração, é? Então meu balde furado agora faz parte de alguma galeria?
— E como faz! Ele é peça central de uma instalação contemporânea chamada: “O arquétipo coletivo do resíduo doméstico” — declarou solenemente, piscando um olho.
Dona Ica estreitou os olhos, fechou a boca numa linha séria… mas acabou sorrindo. Era impossível ficar brava com aquela dupla esquisita.
Enquanto isso, Huba, o cão peludo preto e branco, voltava para sua casinha — e não vinha de patas vazias. Trazia algo estranho: um corvo.
As asas do pássaro pendiam sem vida, o bico estava torto, e nada nele parecia ter sinal de alma. Huba o depositou com cuidado num canto do abrigo e sentou-se ao lado, imóvel.
Bence se aproximou, franzindo a testa.
— Isso não pode ser verdade… Huba, o que você fez?
O cão não reagiu. Apenas observava. Como se também estivesse esperando algo. Bence puxou o celular, quase discando, mas hesitou. Talvez pela calma estranha, ou pelo olhar do cachorro.
— Pode ser que ainda não tenha acabado pra ele — murmurou, ajoelhando-se para envolver o pássaro num pano de prato.
Naquela noite, estendeu um cobertor ao lado da casinha do cachorro e deitou ali o corvo. Huba deitou-se a um metro de distância, como um guardião.
— Se ele ainda estiver vivo de manhã, a gente ajuda, camarada — disse ao cão.
Huba soltou um ganido leve, como se concordasse.
Na manhã seguinte, o inesperado aconteceu.
O corvo… estava vivo. Não apenas vivo, mas piscava tranquilamente para Huba, como se tivessem criado um laço invisível. Quando Bence se aproximou, o pássaro soltou um discreto “crá”.
— Isso é inacreditável… — Bence riu, sem crer no que via.
Desde aquele dia, Huba e o corvo — que Bence batizou de Kormi — tornaram-se inseparáveis.
O cachorro cuidava dele como se fosse seu filhote, e o corvo, ou empoleirava-se nas costas do cão, ou caminhava ao lado, como um guarda-costas penado.
A vila no começo apenas cochichava e revirava os olhos. Mas depois…
Numa manhã, Dona Ica gritou em frente à venda: o corvo havia salvado uma criança.
Um menino ficou preso sob o balanço, ninguém percebeu — mas Huba latiu, e Kormi agitava-se no ar até que alguém reparasse.
A notícia correu o vilarejo. Falava-se na fila da padaria, comentaram até no rádio. E Bence, coçando a cabeça, só dizia:
— Vocês dois… sabem de coisas que a gente nem imagina, não é?
Huba apenas arfava. O corvo o fitava com um olho só. E se Bence não se enganou, ouviu um sutil “crá” — ou foi coisa da sua mente.
A semana seguinte trouxe sinais ainda mais estranhos. De madrugada, alguém arrombou a creche.
Nada foi levado, mas encontraram no local um sapo morto, uma pena preta e a marca de uma pata de cachorro. No peitoril da janela — arranhões.
Ninguém disse nada em voz alta, mas todos sabiam: Huba e Kormi estiveram ali.
A partir dali, o olhar do povo mudou. Alguns acenavam, outros até tiravam o chapéu ao cruzarem com a dupla.
Um adolescente que vendia cigarros atrás da escola para os pequenos, acabou com cocô de pássaro no cabelo. Huba deitou-se à sua frente como uma barreira viva. O garoto não saiu do lugar.
No dia seguinte, penduraram uma placa escrita à mão na porta do armazém:
“Kormi e Huba — os vigias silenciosos da vila. Melhor estar do lado deles.”
Numa noite, ouviu-se um crá estranho diante do portão de Bence. Não era o habitual, mas agudo e urgente.
Huba já corria para o fim da rua. Bence foi atrás. Na janela dos fundos da venda, alguém forçava a entrada com uma alavanca.
Kormi mergulhou sobre o invasor, Huba rosnou ferozmente, e Bence gritou. O homem fugiu. A câmera de segurança gravou tudo.
No dia seguinte, olhavam de forma diferente para a casa de Bence. No portão, uma nova placa:
“Atenção! Área protegida por cão e ave — inteligência acima da média!”
Quando o clima esfriou, algo mudou. Os dois animais ficaram inquietos.
Numa madrugada, Huba latiu quase em prantos, e Kormi soltava gritos agudos. Bence saiu correndo descalço. Da casa da vizinha, Dona Marika, saía fumaça.
Kormi cracava do parapeito, Huba arranhava a porta. Bence arrombou com um machado, lá dentro a fumaça era densa, mas encontrou a senhora caída no chão.
Carregou-a para fora. Dona Marika voltou a si devagar, e sussurrou:
— Foram eles… eles me salvaram…
No dia seguinte, a vila celebrou. Repórteres, câmeras, microfones. Perguntaram a Bence qual era o segredo.
— Talvez seja só isso… nenhum deles é humano.
Uma semana depois, houve festa na praça. O prefeito, emocionado, discursou:
— A coragem não depende da espécie. Às vezes vem com pelos e penas, em silêncio.
As crianças fizeram uma coroa de flores para Kormi, e deram a Huba uma coleira enfeitada.
Ao lado da igreja, ergueram uma estátua: um cão sentado com um corvo ao lado. Sem ostentação. Apenas uma frase na base:
“Heróis nem sempre falam. Apenas agem.”
Desde então, Bence começou a receber cartas. Perguntam como ele os treinou.
Em todas as respostas, ele escreve a mesma coisa:
“Não fui eu que os ensinei. Foram eles que me ensinaram.”